Por Marcuss Silva Reis, economista e profissional do setor aéreo.
Nos últimos tempos, volta e meia surge o debate sobre a abertura da cabotagem aérea no Brasil, isto é, permitir que companhias estrangeiras realizem voos entre cidades brasileiras. E com ele, sempre ressurge o argumento de que essa liberação seria “baseada na reciprocidade”. A ideia parece até lógica no papel: se deixarmos empresas estrangeiras voarem aqui dentro, nossas empresas também poderão voar nos países delas.
Mas, como quem conhece os bastidores do setor aéreo e os fundamentos da economia sabe muito bem: essa tal “reciprocidade” é uma falácia — e das perigosas.
A armadilha da reciprocidade.
Vamos direto ao ponto. O Brasil não tem estrutura nem quantidade de empresas ou aeronaves para sustentar um acordo real de reciprocidade. Historicamente, nunca teve.
Para ilustrar com dados, basta lembrar da maior empresa aérea que o Brasil já teve: a Varig. No seu auge, a companhia operava com frota robusta, presença global e respaldo do governo brasileiro. Ainda assim, conseguiu manter apenas cerca de 20% dos voos internacionais realizados por empresas estrangeiras em rotas com o Brasil. Ou seja, para cada cinco voos operados por empresas estrangeiras para cá, a Varig fazia apenas um para fora.
Se a Varig — com toda sua infraestrutura e apoio político — não conseguiu equilibrar essa balança, o que se dirá das empresas atuais, como Gol, Azul e LATAM Brasil, que operam com margens de lucro apertadas, foco doméstico e limitações operacionais significativas?
Cabotagem: solução ou ameaça?
Alguns defensores da medida alegam que a entrada de empresas estrangeiras no mercado doméstico brasileiro aumentaria a concorrência e reduziria o preço das passagens. Na prática, porém, o que se vê em cenários similares ao redor do mundo é que essa suposta concorrência só funciona no curto prazo.
Gigantes internacionais, com frotas maiores e acesso facilitado ao crédito, entram, derrubam os preços nas rotas mais lucrativas (como São Paulo-Brasília ou Rio de Janeiro-Porto Alegre), quebram as empresas nacionais, e depois dominam o mercado. O que vem a seguir? Preços mais altos, redução de rotas regionais e perda de soberania sobre o transporte aéreo interno.
O Brasil tem dimensões continentais e um mercado aéreo desbalanceado, altamente dependente de poucos hubs. Isso exige uma aviação nacional fortalecida e estrategicamente regulada — não a simples entrega das rotas domésticas para companhias que, na primeira crise ou retração global, deixarão o país com aeroportos ociosos e milhares de passageiros desassistidos.
Cabotagem é atalho para o colapso
Permitir a cabotagem sob o argumento de reciprocidade é ignorar a realidade do setor aéreo brasileiro. É desprezar o esforço de décadas para manter uma indústria nacional de aviação minimamente viva e presente.
Se queremos fortalecer o setor, o caminho passa por:
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redução da carga tributária sobre combustíveis de aviação (QAV);
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incentivos reais à aviação regional;
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políticas que estimulem a entrada de capital nacional no setor;
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melhorias na infraestrutura aeroportuária fora dos grandes centros.
Não é entregando o mercado ao apetite das grandes aéreas estrangeiras que resolveremos os nossos gargalos.
Conclusão
A ideia de que a cabotagem pode ser regulada por acordos de reciprocidade é uma desculpa mal construída, usada por quem desconhece a fundo o funcionamento da aviação comercial.
Se a Varig nunca passou de 20% da malha internacional frente às estrangeiras, o que dirá das empresas atuais? Reciprocidade é apenas uma palavra bonita para esconder o verdadeiro objetivo: abrir o mercado nacional a interesses externos sem garantias de contrapartida — e sem a menor chance de igualdade de condições.
O Brasil não precisa de asas emprestadas.
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